A League, Campeonatos, Futebol Mundial

Futebol na Terra dos Cangurus: Uma Jornada Multicultural


Explorando a Diversidade e os Desafios do Futebol na Austrália

Por Eduardo Vieira, Correspondente Internacional na Austrália para o It’s A Gol

Dar um passeio pela cena do futebol australiano é como embarcar em uma jornada de descobertas esportivas. No vasto mundo da maior nação da Oceania, em uma simples pesquisa sobre o futebol, você encontrará predominantemente resultados relacionados ao Footy, originalmente conhecido como Australian Rules Football, o esporte número um por aqui.

Agora, se você está se perguntando por que o futebol, o esporte mais popular do planeta, não brilha tanto “down under” como em outros lugares, a resposta não é simples. Os desafios começam com a identidade e vão muito além do nome.

Embora o futebol seja o esporte coletivo mais praticado na Austrália, ele fica em quarto lugar em popularidade, atrás do Footy, do Cricket e do Rugby. A jornada do futebol nesta terra de cangurus foi influenciada pelas diferenças em uma nação construída por imigrantes, mas nem sempre unida por sua multiculturalidade. Dos descendentes britânicos que ignoraram suas raízes até a dificuldade em abraçar imigrantes pós-Segunda Guerra Mundial, o futebol nunca conseguiu reunir uma verdadeira identidade nacional.

Para a temporada 23/24, após inúmeras tentativas de promover o esporte e estimular seu crescimento, o futebol australiano enfrenta novamente um período de agitação, com debates acalorados sobre seu futuro e novidades que prometem fomentar o esporte britânico no país.

Futebol Étnico e o Papel dos Imigrantes

As ondas de imigração que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial exerceram uma influência direta no futebol australiano. A Austrália recebeu um grande número de imigrantes em busca de uma nova vida, oriundos de uma variedade de países.

Gregos, italianos, alemães, holandeses, poloneses, sérvios, croatas, albaneses, macedônios, turcos e muitos outros grupos étnicos encontraram na prática do futebol uma maneira de manter viva sua cultura e tradição. Ao longo dos anos, também chegaram imigrantes da Ásia, África e até mesmo da América do Sul.

O amor pelo esporte e o aumento do número de estrangeiros contribuíram para um boom na prática do futebol no final dos anos 40. No entanto, essa aparente força do futebol acabou se tornando uma barreira para sua difusão. Muitos australianos de origem anglo-saxônica, que compõem a maioria até hoje, olharam com desconfiança para a chegada de imigrantes e se distanciaram de atividades associadas a eles, incluindo o futebol. Ao mesmo tempo, a cultura fechada e, por vezes, hostil desses grupos impediu que pessoas de origens étnicas diferentes fossem bem-vindas em seus clubes, seja como jogadores ou torcedores. A rivalidade étnica, alimentada desde os tempos na Europa, também contribuiu para a violência em campo.

Essas diferenças acabaram se transformando em obstáculos para a unidade nacional, tornando o futebol cada vez mais uma atividade associada a estrangeiros, com pouca assimilação entre os “verdadeiros” australianos.

Remorsos de Um Passado Penal

Você pode se perguntar: “Mas o futebol não foi inventado pelos britânicos? Se os australianos de origem anglo-saxônica são descendentes da Rainha, por que eles não se sentiam representados pelo esporte?”

Sim, o futebol foi, de fato, inventado pelos britânicos e foi trazido para a Austrália durante a colonização. No entanto, a história peculiar da colonização penal australiana contribuiu para a relutância em abraçar o futebol. A colonização da Austrália começou como uma grande prisão para o Império Britânico, e essa origem sombria fez com que as gerações subsequentes se esforçassem para se afastar da cultura britânica. Eles carregavam o estigma de serem descendentes de criminosos deportados e, portanto, distantes do Império e de sua cultura.

O Australian Rules Football, uma mistura do futebol gaélico com esportes aborígenes, surgiu como a primeira tentativa de criar uma identidade nacional a partir da década de 1850. Enquanto isso, o futebol era visto como um esporte de estrangeiros desde sua chegada, o que, ao longo dos anos, reforçou a ideia de que o Footy era genuinamente australiano.

Socceroos e National Soccer League

Apesar das divisões, o futebol continuou a crescer após a Segunda Guerra Mundial, embora timidamente em comparação à febre do Footy. Ligas regionais surgiram e, mais tarde, a primeira seleção nacional de futebol se formou, acompanhando o sucesso das Copas do Mundo.

A primeira participação dos Socceroos na Copa do Mundo veio apenas em 1974, e, apesar da eliminação precoce na fase de grupos, foi um marco. Essa experiência ajudou a gerar um novo interesse pelo futebol, e três anos depois, em 1977, nasceu a primeira grande competição nacional, a National Soccer League (NSL).

Dos 14 times fundadores da NSL, 12 eram de origem étnica e apenas dois eram anglo-australianos. Essa tendência persistiu ao longo dos anos, criando uma barreira para a popularização do esporte. Sem representação na NSL, os descendentes britânicos se afastaram do futebol, optando por outros esportes.

Na tentativa de superar essas barreiras, a NSL, a partir dos anos 80, proibiu clubes de usar nomes de origem étnica e até mesmo cores e cantos de torcida que fizessem referência a países de seus antepassados. No entanto, essa medida foi vista como uma ameaça às culturas e causou descontentamento, levando a um declínio na popularidade da liga nas décadas seguintes.

Relatório Crawford

Paralelamente aos conflitos étnicos, os Socceroos enfrentaram desafios nas eliminatórias da Copa do Mundo após 1974. O futebol passou a ser considerado uma vergonha nacional, e o público se afastou dos estádios. O descontentamento generalizado e a desunião nacional levaram o governo a buscar uma mudança drástica no futebol australiano, especialmente após os investimentos realizados após os Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000.

Em 2003, o ministro do esporte, Rob Kemp, criou o Comitê Nacional de Revisão do Futebol, cujo resultado foi um relatório chamado “Relatório Crawford”. Este documento marcou uma virada na conturbada história do futebol na Austrália, identificando uma série de problemas, desde a violência entre torcidas até a má gestão da NSL e suas ligas regionais, incluindo casos de corrupção, declarando que a liga era financeiramente inviável. Com base no relatório, o governo decidiu encerrar a NSL e reformular completamente a Australian Soccer Association (ASA), criando a Football Federation of Australia (FFA), hoje apenas Football Australia (FA) e anunciando a criação da A-League, uma competição destinada a modernizar o futebol na Austrália de uma vez por todas.

A-League – Uma Cidade, Um Time

A A-League, em contraste com a NSL, nasceu com um formato de franquias, onde clubes-empresas adquiriam licenças para participar da competição. O lema “Uma cidade, um time” tinha como objetivo fortalecer a identidade dos clubes recém-formados em torno das principais cidades australianas. O marketing em torno da novidade e a histórica classificação da Austrália para a Copa do Mundo de 2006, após 32 anos de espera, trouxeram atenção para a liga em seus primeiros anos. Estrelas como Romário, Del Piero, Heskey, Robbie Fowler e Dwight Yorke foram recrutadas como atrações para atrair mais espectadores. A mudança da Austrália para a Confederação Asiática de Futebol elevou o nível do esporte em termos continentais. As equipes mais bem classificadas na A-League passaram a se qualificar para a Liga dos Campeões da Ásia, enquanto os Socceroos enfrentavam seleções mais fortes, alcançando resultados cada vez melhores, incluindo a conquista da Copa da Ásia e classificações consecutivas para a Copa do Mundo.

NPL e a Sobrevivência do Futebol Raiz

Enquanto a A-League crescia, o que acontecia com os clubes étnicos e suas fervorosas torcidas? Eles foram esquecidos pela FA e diminuídos pelo sucesso da A-League. Os clubes do futebol raiz passaram a competir apenas em torneios regionais e enfrentaram sérias dificuldades financeiras. Sem visibilidade na mídia, lutavam para atrair grandes investimentos ou patrocínios. Para piorar, a FFA extinguiu o sistema de transferências no país, proibindo os clubes de obterem lucro com a venda de jogadores para outras equipes, o que prejudicou ainda mais os clubes do futebol raiz. Em 2013, após protestos e pedidos por mais investimento e atenção ao futebol raiz, a FA criou a National Premier League (NPL), uma liga nacional paralela à A-League, na qual os clubes do futebol raiz poderiam competir em nível mais alto e, assim, garantir sua sobrevivência. A NPL era administrada pela FA e dividida regionalmente entre os estados e territórios australianos. Apesar de receber menos investimento e mídia em comparação à A-League, a NPL já nasceu grande em escala, dividida em oito federações e suas State Leagues. A criação de copas regionais e da FA Cup, uma competição nacional com mais de 600 times hoje conhecida como Australia Cup, permitiu o confronto entre equipes tradicionais, de origem étnica, e os clubes mais recentes da A-League, proporcionando jogos emocionantes. A criação da NPL e das State Leagues revitalizou os clubes do futebol raiz. As lições aprendidas com as dificuldades anteriores mostraram que era possível gerenciar paixões culturais de forma profissional e lucrativa.

Estagnação da A-League e Pressão por Mudanças

Nos últimos anos, a A-League viu sua audiência e média de público estagnarem, especialmente após 2015, quando uma queda de popularidade foi registrada. A comparação com outros esportes mais populares tornou-se inevitável. Enquanto o Footy atrai multidões de até 40 mil pessoas por jogo, o futebol luta para superar uma média de 12 a 13 mil espectadores por partida. Hoje, um grande movimento se formou na comunidade do futebol na Austrália em busca de uma reformulação. Dirigentes, torcedores, parceiros comerciais, imprensa, atletas e ex-atletas pressionam a FA por mudanças. A criação da A-League, que parecia uma ideia revolucionária, agora enfrenta ceticismo crescente. Com 12 equipes na liga atualmente, a falta de uma segunda divisão estabelecida e a ausência de um sistema de promoção e rebaixamento prejudicam o drama e o interesse dos torcedores. Todos esses problemas estão no centro das demandas por mudanças na FFA. O CEO da Federação, James Johnson, assumiu o cargo em 2020 com a missão de unir todas as partes envolvidas e determinar o futuro do futebol na Austrália. Em seus primeiros anos de FA realizou diversas conferências para ouvir a comunidade do futebol e entender suas opiniões. O resultado foi o documento “XI Principles for the Future of Australian Football”, que serve agora como base para as transformações nos próximos anos. Novidades como a criação de um sistema de transferências e a uma iminente Segunda Divisão Nacional, que irá unir os clubes do futebol moderno e do futebol raiz, prevista para começar em março de 2024, são os novos caminhos aguardados para um levante do futebol no país. Os bons desempenhos dos Socceroos e das Matildas nas últimas Copas do Mundo, masculina e feminina, e a própria realização do mundial feminino no país, em parceria com a Nova Zelândia, fortaleceram o esporte na terra dos cangurus nos últimos meses. Sabendo disso, a FA e suas entidades estaduais tentam surfar ao máximo na onda positiva. Mas apesar da necessidade das mudanças, a organização as encara com cautela, reconhecendo a necessidade de a Austrália abraçar suas raízes multiculturais e unir o futebol moderno com suas origens, conciliando a paixão dos povos que ajudaram a construir o país com o profissionalismo dos clubes-empresa que definem o cenário atual.

O potencial do futebol na Austrália é imenso. Sua diversidade cultural permite a formação de atletas com variadas características, mas a falta de unidade nacional tem sido um obstáculo para o desenvolvimento de novos talentos. Se a Austrália encontrar o caminho certo, poderá se tornar uma potência não apenas em sua cultura diversificada, mas também no futebol, um esporte que reflete a rica tapeçaria de sua sociedade.

Estamos ansiosos para acompanhar os próximos capítulos dessa história aqui, no It’s a Gol.


Eduardo Vieira (@aleaguebr)

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