Hoje o Brasil faz memória aos heróis da liberdade. Promove uma reflexão sobre a inserção da comunidade negra na sociedade. E busca olhar para um afrofuturismo forte. O futebol, em meio a isso, vive caminhada de pertencimento, junto a história social, passando por cada fase. Passado, presente e futuro. Mas tudo isso passa por um pontapé inicial. O berço. Um lugar que proporcionou que todos os outros não fossem só mais um. O Club de Regatas Vasco da Gama. Se há Pelé, é porque há Vasco. O próprio rei disse isso. Se existem cinco estrelas no peito da camisa canarinho é graças a constelação de estrelas negras que iluminaram este percurso. Ou seja, o Vasco plantou para que o Brasil crescesse e se tornasse o país do futebol.
“Camisas Negras que guardo na memória. Glória, lutas, vitórias, esta é minha história”. Nélson, Leitão e Mingote; Nicolino, Claudionor e Artur; Paschoal, Torterolli, Arlindo, Cecy e Negrito. Esses vestiam a camisa preta, que ainda não possuía faixa. No peito, a cruz de Cristo. Alí a hegemonia dos times da Zona sul se via ameaçada. Botafogo, Flamengo e Fluminense dominavam o cenário. E as partidas, com protocolos, repletos de maneirismos ingleses, nas Laranjeiras, representavam o cenário elitista do esporte. Alguns clubes tentavam se erguer no subúrbio. O máximo que se permitiu foi que o América ascendesse, vindo da Tijuca, mas de uma elite tijucana. Mas o Vasco chegou lá. Os Camisas Negras venceram o campeonato estadual. Importante frisar, que na época, era esse o principal torneio. Mas o time de negros e operários, no meio do caminho sofreu bastante. Começa que ali,100 anos atrás, o tal time da virada nascia, muito antes da torcida cantar. O treinador Ramón trazia uma marca ao futebol brasileiro. Não o Ramón de hoje. Era uruguaio. Platero trazia o conceito de preparação física para nós. E o Gigante da Colina venceu vários jogos no segundo tempo, após sair perdendo.
Inclusive o derradeiro jogo do título, contra o São Cristóvão, foi assim. 2×0 se tornou 2×3. Mais uma virada pequena, perto da revolução que a negritude da zona norte proporcionou ao esporte bretão. Na partida anterior, aquela sensação de estarem todos contra você. Contra o Flamengo, todos os times da elite se juntaram, cheios de pompa, na arquibancada do campo do Fluminense. O árbitro anulou um gol legítimo do Vasco. Nenhuma novidade. Você luta contra todos, de forma desigual. Vence a luta. Mas o jugo sempre há de ser mais pesado. Foi a única derrota do time do povo. Um ano depois, todo o malabarismo jurídico foi feito para que os campeões não disputassem o Cariocão. Os outros clubes abandonaram a Liga Metropolitana. Criaram, então, a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos. Na chamada AMEA, cláusulas absurdas proibiram o Vasco de jogar. A inscrição de jogadores sem profissão definida e analfabetos foi vetada. Custódio Moura, o Bibliotecário do time, ensinou aos atletas a assinar seus nomes. Essa era a primeira aula da história. A inspiração para o Colégio Vasco da Gama nascia também. Muito tempo depois, Eurico inaugurava a escola. Esporte e educação lado a lado. Se outros planejavam deixar ainda mais as margens, os marginalizados, o Vasco os trouxe para o centro de seus holofotes. Porém, times sem estádio também não puderam competir. A resposta histórica foi escrita. E desde então, cada dia do Vasco se tornou isso. Uma Resposta histórica. A tudo que a sociedade fez e faz contra seu povo. Uma resposta a elite. As instituições. Ao seu racismo. Após superar as amarras da sociedade, elas eram refeitas. Mas a vocação cruzmaltina já
estava firmada. Está no batismo. Lutar contra o seu racismo. E começava desse jeito a história do legítimo clube do povo. A sua verdadeira história. Ainda que o Vasco já tivesse nascido antes. Assim como na fé Cristã, foi em seu batismo que o Vasco verdadeiramente nasceu.
Entretanto, o Vasco não abriu portas para o Vasco. O Vasco ladrilhou o chão para que o país do futebol começasse sua caminhada. Se um bom time começa com um bom goleiro. Essa trajetória também. Nelson, brilhante goleiro, que sofria com charges racistas nos jornais da época. Foi convocado pela Seleção Brasileira. Seu talento falava muito mais alto. Foi o primeiro goleiro negro da história da nossa seleção. Agarrou muito no Sulamericano do Uruguai em 1923 e por isso ele não foi proibido pelo AMEA. Os negros sempre precisaram fazer mais para conseguir o mínimo. Nelson, para ter o direito de trabalhar, precisou ser só o melhor goleiro da América. A propósito, a posição talvez seja a mais simbólica nesse sentido. Barbosa foi goleiro da Copa de 50. Desse modo, criou-se uma lenda. Goleiro negro dá azar. Com o respeito aos antigos. Não é lenda nenhuma. Muito menos mito.
Nada mais que uma oportunidade de ser racista, escorado pelas muletas, que usamos até hoje. Não é que eu não goste de goleiros negros, é que eles dão azar. Tenho até um amigo goleiro negro. Depois de 1950. Dida em 2006 foi o segundo e, até hoje, são os únicos goleiros negros titulares em Copa.
Tudo isso no país em que o dia do goleiro é comemorado no aniversário de Manga. Fantástico goleiro do Botafogo. Negro. Em 64 edições do Brasileiro unificado, foram 14 goleiros negros campeões apenas. Indo aos jogadores de linha, Leônidas da Silva, ídolo do Flamengo, foi artilheiro da Copa de 38 e além de craque, é considerado o primeiro jogador politizado da história. Percebem, um grande ídolo do Flamengo, só é graças ao Vasco. Graças aos camisas negras, que abriram o caminho. Nos anos 40, o Vasco, com o expresso da vitória, daria o primeiro título internacional do Brasil. Um time de negros. Na Copa de 50, no entanto, Barbosa, já mencionado, e os outros negros, foram vilanizados pela imprensa e pelo público. Nada muito diferente do que temos acompanhado da atual geração inglesa. Com os jogadores negros sofrendo ameaças após os insucessos na Eurocopa e Copa. Mas Pelé, Garrincha, Djalma Santos e Didi nos deram em 1958 a primeira Copa. Indo contra o que pensava o chefe da delegação brasileira. João Lyra filho acreditava que o “feitiço” do futebol solta e de improviso dos negros iria de encontro a obediência tática. Isso faria mal. Tal feitiço é o que nos faz país do futebol. Que nos fez pentacampeões. Além dos heróis de 58, Jairzinho, Romário, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho, entre outros, construíram as 5 estrelas. 58, Didi. 62, Mané. 70, Pelé. 94, Romário. O que os une? 4 homens negros, eleitos “o melhor jogador da Copa”, em ano que fomos campeões. Como em 2002, Oliver Kahn ganhou o prêmio, 100% dos craques das copas que fomos campeões eram negros.
Em suma, sem o Vasco não haveria Camisas negras. Sem Camisas negras não haveria negros no futebol, ou ao menos o processo seria bem mais lento e, talvez não desse tempo de Edson se imortalizar como Pelé. Como resultado, não seríamos pentacampeões. E nunca seríamos país do futebol. Que possamos ser gratos aos heróis da liberdade esportiva. Reconhecer sua luta. E trabalhar para que os novos não lutem tanto. Histórias de superação são bonitas. Mas tudo seria melhor se elas não precisassem existir. Tudo seria melhor se o Vini jr só precisasse jogar bola. Sem ouvir gritos de
macaco a cada jogo na Espanha. Mas se for puxar esse “seria melhor”, de “se” em “se” eu voltaria até o início da nossa formação como ser humano. De maneira mais particular, como nação. Por fim, o título dessa crônica leva uma adaptação do título do samba da Mangueira de 1988. Mangueira, do Cruzmaltino Nelson Sargento. É justo, com isso, que se finalize com um trecho daquele samba: “Moço, não se esqueça que o negro também construiu, as riquezas do nosso Brasil”
Guilherme Presunto | @guilhermepresunto_