Nunca poderia fazer parte de um projeto em que não fosse protagonista” são palavras que decorei em outubro de 2001. Essa frase foi proferida pelo único ídolo que tive no futebol, Zvonimir Boban, quando decidiu pendurar as botas poucos dias depois de celebrar 33 voltas ao sol e com a La Liga somente na 7ª jornada.
Uma atitude louvável, corajosa, consciente (mas muito orgulhosa) de alguém que não queria tornar-se um problema para um plantel do Celta de Vigo que tinha como “dono do time” Alexandr Mostovoi (concorrente direto de Boban na posição de “10”).
Recordo aquela frase em muitos momentos da minha vida, profissional e pessoal, e recordo-a agora neste momento em que a seleção portuguesa conseguiu a sua maior vitória de sempre!! 9-0 parece uma goleada dos tempos do Eusébio mas não…
9-0 foi a goleada que Portugal infligiu ontem ao (fraquíssimo) Luxemburgo, num jogo sem o Cristiano Ronaldo. Sem surpresa, aquelas vozes desconfortáveis que durante o Campeonato do Mundo do Qatar defendiam a condição de suplente (e, antes até a não convocação) do “papai Cris” voltaram.
Mas essas vozes já se ouvem há mais tempo…
No rescaldo do Campeonato do Mundo de 2018, onde fez uma das partidas mais fantásticas pela seleção das Quinas com um hat trick inolvidável contra os “nuestros hermanos”, CR7 rumou à Juventus após 9 anos a escrever a melhor história que alguém escreveu até hoje no Real de Madrid.
E na adaptação à nova vida, à “Vecchia Signora”, à Seria A e a Torino, Cristiano Ronaldo teve ainda de lidar com a reabertura de um processo referente a 2009 em que uma modelo norte-americana acusou-o de violação. É nesse contexto de mudanças e instabilidade que CR7 pede dispensa das convocatórias da seleção portuguesa na segunda metade de 2018, coincidindo com a fase de grupos da Liga das Nações.
E as coisas mudaram instantaneamente! Desde que o Eng. Fernando Santos tinha assumido o cargo de selecionador pós-Mundial 2014, a seleção portuguesa vinha jogando de forma lenta, fria, apática (diriam os fãs de futebol vertical), cínica e pragmática (diriam os fãs da vitória a qualquer custo). Foi dessa forma que Portugal venceu a Eurocopa em 2016. Só que, nesse final de 2018, sem CR7, a seleção portuguesa fez jogos tremendos, com velocidade, tendo inclusivamente dominado e vencido a sempre poderosa Itália, tetra campeã mundial.
Portugal apurou-se para a fase final da Liga das Nações e as vozes começaram logo: “O Cristiano Ronaldo não faz nada na seleção”, “Sem o Ronaldo estamos melhores, aqui está a prova”, “CR7 só atrasa a seleção” “O problema da seleção é o Cris” “Não convoquem mais o Cristiano!”… Bem…. até à data CR7 já tinha 85 golos por Portugal em 154 jogos… Deixa-os falar.
Na fase final da Liga das Nações, em junho de 2019, Cristiano Ronaldo já tinha regressado à seleção. Um ano tinha passado desde o seu último golo por Portugal e extra motivado pelas muitas vozes que ouviu e pelos comentários que leu nas suas redes sociais, CR7 vitimizou a Suíça com um hat trick (!) e foi super ativo na final ganha contra a Holanda.
Mesmo acumulando golos, muito golos por Portugal desde 2019 (só Messi tem números parecidos na seleção), as vozes de contestação às convocatórias e titularidade de CR7 nunca mais desapareceram e intensificaram-se na Copa do Qatar. Lá, CR7 apresentou-se abaixo do seu supremo nível e no terceiro jogo, ao ser substituído, deu a desculpa perfeita ao selecionador para o deixar de fora “por castigo”, quando havia muita pressão externa a pedir que o deixasse de fora por falta de mérito. Por ironia do destino, Portugal fez um jogo brilhante e venceu a Suiça por 6-1, com o seu substituto (Gonçalo Ramos) a ser titular e a marcar 3 golos incríveis. Aí até as vozes mais trêmulas de critica ao CR7 ganharam confiança e houve uma grande parte da população que celebrou mais o fato de “Portugal ter ganho sem o Cristiano” do que de “Portugal ter ganho.” Essa era a prova que muitos queriam para afirmar que CR7 não fazia falta e só atrapalhava a seleção…
Óbvio que no jogo seguinte, nas “quartas” contra Marrocos, Gonçalo Ramos foi novamente titular mas pouco fez. CR7 entrou no segundo tempo mas Portugal acabou eliminado e emocionei-me ao ver CR7 abandonar o relvado sozinho, sem glória e certamente com o orgulho ferido. Como é que nós, portugueses, podíamos ter feito isto ao nosso maior embaixador pelo mundo?
No fundo, vai bater àquela frase que eu ouço recorrentemente no Brasil acerca do Neymar Jr. e os brasileiros acham ser um exclusivo seu. “O sucesso dos outros incomoda.” “há muita inveja”.
Não, não é um exclusivo vosso. Acontece aí, acontece em Portugal, em Inglaterra, em Espanha, em Itália… Cristiano viveu e jogou nestes três últimos países citados e teve de conviver com essa inveja, aliado a alguma xenofobia, tanto de torcedores rivais como de colegas de profissão e (arrisco-me a dizer) do próprio time.
Mas porque é que o CR7 tem de sofrer o mesmo dos seus próprios compatriotas? Porque é que após o 9-0 de ontem contra o Luxemburgo volta-se a questionar a utilidade do Cristiano? Ganhar 9-0 ao Luxemburgo pouco significa. Com ou sem CR7 a vitória era certa. Com CR7, ele aumentaria a sua conta de golos pela seleção. Sem Ronaldo, outros marcaram… Ponto!
É certo e sabido, nós portugueses temos um notável complexo de inferioridade que nos atraiçoa. Vamos a Espanha e ficamos chateados porque eles nos tratam como inferiores. Vamos a França e não aguentamos aquele ar de superioridade. Vamos a Alemanha e ficamos enraivecidos por se acharem superiores a todos…
E nós temos um Português que é unanimemente considerado um dos poucos deuses do jogo que mais corações coloca em fogo pelo mundo inteiro e queremos enterrá-lo vivo? Queremos cavar-lhe a sepultura antes do tempo?
É completamente natural que o jogo de Portugal com Cristiano Ronaldo seja diferente. Ele é um avançado que gosta de sair da área e assumir a responsabilidade. Inconsciente ou conscientemente, os outros jogadores solicitam-no mais do que a outros que entrem na sua posição. Não dá para comparar e para mim, um jogo “diferente” nunca foi sinónimo de jogo “pior”. Será que não há noção (e respetiva gratidão eterna) do que que é jogador que marcou recentemente o seu 123º golo em 201 jogos por Portugal?
Certamente que a gratidão não pode ser requisito de convocação e até porque já estamos a falar de um jogador que passou a idade normal da reforma futebolística. Mas nunca houve um futebolista no mundo que fosse tão “atleta profissional” como o CR7, pelo que as idades convencionais não lhe podem ser imputadas. Aos 38 anos do CR7, ainda há força física, ainda há explosão, ainda há genialidade, ainda há posicionamento, eficácia e visão. E além disso, vejo mais “eye of the tiger” no Cristiano do que em Rafael Leão e João Félix somados e elevados ao cubo! É realmente outro nível…
E o Cristiano Ronaldo deve ter consciência disso. Tenho a convicção de que Cristiano Ronaldo, orgulhoso como poucos, consegue notar que ainda faz muita diferença e que, quando não fizer, será o primeiro a admitir.
Porque há quem nasça protagonista, quem nasça figurante e quem nasça nada. Cristiano nasceu nada, condenado a ser nada e pelo seu esforço hercúleo tornou-se um grande protagonista. E quando sentir que já não dá para ser protagonista*, acredito que decidirá ser “nada” porque a ideia de ser figurante é naturalmente uma dor maior para alguém que se tornou divino. E aí Cristiano Ronaldo poder usar a frase de Boban, sem pagar direitos de autor:
“Nunca poderia fazer parte de um projeto em que não fosse protagonista”.
*Até lá resta-nos aproveitar o seu génio e talento e esperar que os seus colegas de seleção continuem a beber da sua fonte, com ou sem goleadas.
Rafa Boban | @revista.lebre