Invariavelmente criam-se notícias em torno do mundo do futebol que deixam as outras modalidades frustradas, para não dizer mesmo, indignadas.
Em Portugal, nas semanas que antecedem Copas do Mundo ou Eurocopas de futebol, investiga-se quantas vezes CR7 foi ao banheiro, quantas folhas tem o papel higiénico do hotel da seleção, de que tecido são feitas as roupas de cama onde se deita, a que temperatura está a água da piscina em que se banha, quantos litros de água bebe entre refeições, quanto tempo passou a jogar videogames ou demorou a arranjar as sobrancelhas, com quem esteve ao celular… Enfim, notícias certamente escritas jornalistas com noções de marketing para conseguirem criar necessidades que não existem nas pessoas! Porque ninguém me vai convencer de que a grande maioria das notícias escritas nos pré-campeonatos de futebol dão resposta às necessidades do cidadão comum, a não ser que o cidadão comum já seja aquele seguidor do Big Brother. Aí que me desculpem jornalistas!
Mas para além dessas notícias que invadem totalmente a privacidade dos jogadores, existem outras no aspeto físico/fisiológico que se servem de comparações para endeusar ainda mais os craques da bola. Nesse campo, a “minha” modalidade Atletismo está constantemente a ser cutucada. E o que é um absurdo para muitos do mundo do atletismo, eu vejo uma ferida de invasão aberta que grita “Deixem-nos em paz…”.
Primeiro porque as comparações são cancerígenas, raramente produzem efeitos positivos. E segundo, porque essas comparações são injustas. Já diz a sabedoria popular que não se deve comparar batatas com cebolas ou, para melhor entendimento, futebolistas com atletas de outras modalidades.
Pelo menos no mundo do atletismo, há revolta quando ouvimos dizer que Mbappé ou outro futebolista correu mais rápido que o famoso “Azáin” do mito Alê Oliveira (o jamaicano Usain Bolt). Isto porque comparam a “velocidade máxima” de Mbappé com a “velocidade média” do Usain Bolt. É que o Mbappé já foi apanhado a cerca de 38km/h em 20 metros lançados (isto é, com corrida de balanço) e comparam esse pico de velocidade com a velocidade média de Bolt no seu recorde mundial dos 100 metros quando o jamaicano parte de uma velocidade zero. Se falassem de velocidade máxima dos dois, não haveria falácias: Bolt atingiu os 44,7km/h! Respeitem o Bolt! Não façam comparações!
Há revolta quando escrevem que o CR7 é o humano que mais alto saltou na história da humanidade. Quando estava na Juventus, Cristiano Ronaldo fez um cabeceamento a 2,56m o que significou uma impulsão vertical de 71cm. Impressiona o cidadão comum mas na NBA isso seria um requisito mínimo. Michael Jordan tem um registo superior a 1,10m de impulsão vertical! No salto em altura, Javier Sottomayor conseguiu elevar todo o seu corpo acima de um “sarrafo” colocado a 2,45m! Respeitem os jogadores da NBA, respeitam os saltadores em altura! Não façam comparações!
Há revolta quando a capa de um jornal desportivo enaltece a distância corrida por um futebolista durante 90min de um jogo de futebol mas é incapaz de colocar na capa a notícia de um fantástico recorde nacional de corrida em longa distância.
Confesso que hoje aguardei ansiosamente pelas capas dos jornais portugueses já que ontem Samuel Barata, atleta do Benfica, pulverizou o recorde nacional da Meia-Maratona em Valência (Espanha). Já há algum tempo que Barata, o melhor fundista português da nova geração, procurava bater um recorde que pertencia a Luís Jesus e durava desde 1997- Há 26 anos atrás, Luís Jesus tinha atravessado a meta com o relógio nas 1h00m56s. Ontem, Samuel Barata fez história no desporto português, tendo parado o seu cronómetro aos 59 minutos e 40 segundos depois de percorrer os 21,0975km. Retirou 1m16s ao anterior recorde o que é absolutamente fantástico! Mas não só isso! Em toda a história da humanidade, só houve 175 pessoas a correr mais rápido que ele essa distância, e quase todos do leste africano que sabidamente são “geneticamente” feitos para corridas de longa distância. E vermos que só dois europeus (de nascença) conseguiram até hoje melhor que Samuel Barata dá bem conta da proeza do atleta do Benfica!
E adivinhem só: nem uma pequena nota num canto de uma capa de jornal desportivo!
E agora, caro leitor, se você está à espera que eu faça alguma comparação e pergunte quantos kms percorre um futebolista em 59m40s, você ainda não entendeu nada. Os treinos são diferentes, os focos são diferentes. Batatas não se misturam com cebolas! Respeitem os futebolistas! Respeitam o Barata! Não façam comparações!
O que é legítimo fazer é pedir-lhe que faça uma experiência. Vá para a estrada e marque 1 quilómetro. Depois de um bom aquecimento, corra o mais rápido e consistente que conseguir esse quilómetro, cronometrando-o. Ou se tiver amigos futebolistas, cronometre-os num quilómetro “a dar tudo”. Será que baixam dos 3 minutos?
É que ontem Samuel Barata fez uma média de 2 minutos e 49 segundos por cada km ao longo de uma meia maratona. Dizem que os recordes são muito difíceis, mas este… este é de uma dificuldade assustadora! E nem uma menção na capa de um jornal desportivo português?
Parece piada de mau gosto mas serve para reflexão. Porque é que coisas aparentemente fúteis são relevantes e recordes nacionais não? Se chutasse uma bola, estaria na capa do jornal? Será que as pessoas são insensíveis aos esforços das “modalidades amadoras”? Não será um recorde nacional digno de ser enaltecido da mesma forma que um jogo de futebol com um placard gorducho?
Na hora de revolta e indignação é que percebo que é difícil evitar as comparações. E é nesse sentido que vos lanço uma pergunta. Aproveitando o nosso nome @its.a.gol e com todo o conhecimento da dificuldade deste novo recorde português da Meia Maratona, já devem estar a imaginar a pergunta:
“Quantos gols valerá o recorde do Samuel Barata?”
Rafa Boban | @rafa.boban