“Camisa não tem sangue”. Quem nunca ouviu isso na infância? Talvez as novas gerações, que brincam cada vez menos, no tal modelo presencial. Mas, você já deve ter se lembrado do pique-pega.
Quando toca na roupa não conta. Às vezes, era só malandragem para não ser pego. Contudo, de fato, camisa não tem sangue. Pode ser feita de vários materiais. Mas certamente, de glóbulos vermelhos, brancos, plaquetas e plasma, não é possível. De uma brincadeira de criança para outra. Vamos ao futebol. Mas sairemos da recreação. O esporte. Coisa de gente grande. Uma camisa pode ter sangue? Ou seja, um determinado time possui um perfil genético? Um jeito próprio de jogar? Algo que esteja acima dos jogadores ou do seu próprio treinador e, consequentemente, de sua filosofia? Para
responder à dúvida, não há times melhores que Corinthians e Flamengo. Primeiro, por ela florescer a partir de uma briga no mercado desses. Mas também, pelo fato de serem times vitoriosos e, dentro da história recente, com padrões associados.
Em primeira análise, volta-se em 2008, quando Mano Menezes assumiu o Timão, na Série B. Ali, provavelmente, começou a vocação defensiva do Coringão. Na competição foram 29 gols sofridos. 25 menos que a média dos times naquela edição. 12 a menos que a segunda melhor defesa. Mas ainda era segunda divisão. Era o favorito e naturalmente fez muitos gols também. Um ataque poderoso, de um time que sobrou. Apenas 3 derrotas. Todavia, o time, com fama de ‘’retranqueiro’’ começa a se construir mesmo no ano seguinte. Campeão da Copa do Brasil, não fazia questão de ter a bola, mas era decisivo quando tinha e, por isso, marcava sempre. Após Mano, o próximo treinador campeão foi Tite. Um passo a mais para trás, no campo. A frente, para a história. Brasileirão, Libertadores, Mundial. Na ordem, o título nacional com apenas 53 gols. Menos que 7 times. 2 gols a mais que o vice-lanterna. Mas uma defesa fantástica. Campeão invicto da América. Contra o Chelsea, Cássio foi o grande destaque. Um ano depois, o time teve a segunda melhor defesa da história. 22 gols sofridos. Mano volta. Tite volta e vence o Brasileiro de novo. Melhor defesa e melhor ataque. Feito só repetido em outras duas edições. Enfim, Tite teve a melhor defesa por três anos. Até chegarmos ao último campeão. Carille. O pior ataque de um time campeão na história. O segundo é do timão em 2011. Mas o único invicto no primeiro turno. Eis o Corinthians. A camisa alvinegra, que dizem ter sangue defensivo.
Agora, o Flamengo. Esse perfil é histórico. Muito se diz que o time de 80 foi dos mais encantadores da história. Desde seu lateral direito, que seria camisa 10 hoje. Até o seu 10, o meia com mais gols da história. Porém, busca-se um recorte mais recente. Brasileiro de 2019.
O time com mais vitórias e mais gols marcados de todos os tempos. O maior artilheiro da história dos pontos corridos. Gabriel. Que tem gol no nome. Arrascaeta foi o principal garçom. Única vez que o artilheiro e o principal assistente jogaram na mesma equipe. No ano seguinte, campeão com a pior defesa de um primeiro colocado, 48 gols. A segunda pior foi do próprio, em 2009. Na Libertadores, é o time com o maior artilheiro brasileiro da história.
No dia da eliminação para o Olimpia, o time chegou a 28 jogos seguidos marcando na competição. Feito isolado. Recorde em contagem. Maior placar agregado da história das quartas e o maior placar agregado das semifinais (com dois jogos). Não citei treinadores. Isso é simbólico. Seja lá quem passe pelo Flamengo, parece ter uma obrigação de seguir o sangue ofensivo.
Assim, tal apanhado, torna-se muito relevante quando os dois times demitem seus treinadores, de forma conjunta. E, em teoria, clubes que pensam tão diferente queriam o mesmo comandante. Tite. No Parque São Jorge seria unânime. Todo corinthiano estaria realizado. Na Gávea. Nem tanto. E quando observa quantos treinadores fracassados passaram pelo rubro-negro, torna-se até louco recusar um profissional tão qualificado. O motivo do
desprezo de alguns torcedores? O tal sangue de Tite. Ele não possui a cara. Ou o jeito. “Não queremos retranqueiro’’. Tudo isso é argumento para quem é contra a contratação. O Corinthians, do outro lado, segue sua identidade. Trouxe o Mano de novo.
Em suma, camisa tem sangue ou não? Para o humilde cronista que vos fala, não. Apesar do, esse, sim, brilhante Nelson Rodrigues, dizer que ‘’chegará o dia que a camisa do Flamengo ganhará um jogo sozinha”. Quem a veste é que irá atrás das conquistas. São os jogadores. Escolhidos pelos treinadores. Contratados pelos dirigentes. Selecionados pelos olheiros. No fim, sempre são as pessoas. Até a opção de um time ter DNA defensivo ou ofensivo é de homens e mulheres. Claro, cada um tem sua essência. Mas a existência vai a preceder. O homem faz suas próprias escolhas e, ao fazê-las, torna-se o principal responsável por elas e por suas consequências para si e para os demais. Ao escolher Tite, o Flamengo pode se tornar estável defensivamente. Ou ele pode se adaptar às peças e se tornar um treinador ofensivo. Decisões. Tudo que se veste diz. Mas não faz.
Guilherme Presunto | @guilhermepresunto_
Excelente texto Presuntinho, vc é incrível!